Iblussom é uma borbulha. Uma borbulha bem biba.Quando escrevemos sobre um grupo de pessoas que gosta mesmo do que faz corremos o risco de contágio por essa satisfação alheia. Os Trabalhadores do Comércio são um caso exemplar de um grupo de amigos que respira ao mesmo ritmo da música que toca e que somente atinge a felicidade no palco, em estúdio ou na garagem, mas com a vantagem de não necessitar que essa música sirva para pagar as contas da electricidade ou para amortizar as prestações do automóvel.
A verdade é que, tirando o álbum de estreia, “Trip’s à moda do Porto” – que incluía o clássico “Chamem a Polícia” e editado em pleno boom do rock português (1981) –, os seus discos nunca estiveram no lote dos meus preferidos. Ao invés dos “sérios” Arte & Ofício (de onde vieram Sérgio Castro e Álvaro Azevedo), os Trabalhadores do Comércio apostavam mais no gozo da chalaça com pronúncia portuense. Preferia, sem qualquer hesitação, os primeiros e estaria na linha da frente da bilheteira se, por mero acaso, existisse um concerto de regresso dos Arte & Ofício.
Mesmo assim, na minha condição de indivíduo interessado na mmp, fui acompanhando a carreira dos Trabalhadores do Comércio e ficando surpreendido com alguns anunciados “regressos ao activo”. O último dos quais ocorreu no ano passado e foi motivado pelos dois espectáculos de comemoração dos 25 anos da Febre de Sábado de manhã. A experiência (que testemunhei no palco e lá atrás nos bastidores) correu tão, mas tão bem, que Sérgio Castro e demais rapaziada não poderiam abdicar de “novo regresso”.
Como terão compreendido, confesso que foi com pouco entusiasmo que comecei a audição do novíssimo “Iblussom” (“Evolução” à moda do Porto e editado 17 anos após o anterior longa-duração), até porque o álbum é duplo e a um CD de originais se soma um segundo CD, onde se recuperam canções antigas com novas roupagens. Quando um grupo aposta num formato destes é, normalmente, sinónimo de colocação de um disco de inéditos de forma discreta no meio de um conjunto de êxitos garantidos, fazendo render o “best of” como peixe do passado.
Chegado a este ponto da minha escrita, tenho de admitir a surpresa positiva que senti ao longo da audição de “Iblussom”. O novo disco, sobretudo o CD de inéditos, merece ser bem escutado – e, de preferência, com o volume elevado porque isto é mesmo os Trabalhadores do Comércio em formato “evolução”.
A abertura de “Iblussom” junta o novo ao antigo e “Binde ber istu” é uma festa de sons em que a referência central se chama James Brown. Esta música é uma composição de Sérgio Castro e António Garcez, figura mítica do rock lusitano e antigo elemento dos Arte & Ofício ou dos Roxigénio. Mais à frente, a parceria repete-se em “Cordàbida”.
O tema título, “Iblussom”, é um blues intemporal com participação especial de Rui Veloso, numa das suas melhores prestações dos últimos 20 anos. A canção seguinte, “Ardenmus olhus”, em dueto com Berg e com uma sublime presença das Vozes da Rádio, foca a ardente questão dos fogos florestais, constituindo um dos momentos mais intensos e surpreendentes do álbum, que faz pairar no ar a pergunta de quando sairá uma versão menos longa para promoção radiofónica. De surpresa em surpresa, caímos em “Lucinda”, “Ispáncame” ou numa canção “Loucu”, que não me importaria que fosse infinita dado o manancial de portas em aberto que faz questão de deixar para discos futuros. Pelo meio, ainda existe tempo para temas com o mesmo potencial que elevou “Chamem a Polícia” a clássico. Se editadas em 1981, canções como a do baixista Miguel Cerdeira, “Bares Citadinus” (a letra é dele em parceria com Teresa Macedo), ou do antes “pequenino” João Luís Médicis, “Ganda nagóciu”, teriam feito as delícias daqueles tempos.
Em “Iblussom”, a música não está agarrada a uma única corrente, optando por deambular, com um à vontade extremo, entre diversos estilos. Mesmo ao nível das vocalizações se nota a democracia (anarquia?) reinante em todo o disco. Além dos convidados especiais, Rui Veloso, Berg, Vozes da Rádio, Diana Basto e Orlando Mesquita (dos King Fischer Band), a voz principal tanto é de Sérgio Castro como de João Luís Médicis e até Álvaro Azevedo aparece como vocalista num tema escondido.
Fosse um projecto “lá de fora do estrangeiro” e classificaria o disco como sendo de rock alternativo e independente com alguns temas comercialmente fortes e adequados a um público mainstream. Felizmente, desta vez o projecto em apreço é português e afirmo exactamente isso mesmo.
Literariamente, Sérgio Castro permanece um portuense bem disposto, que, mesmo em questões mais sérias como a do tema forte, “Ardenmus olhus”, utiliza sabiamente a sua escrita característica. Musicalmente, o disco tem a força de uma locomotiva, pois, assistimos a uma fusão, sem que se gere confusão, de tudo aquilo que cada um dos membros andou a escutar ao longo dos últimos 17 anos e que transportou para os Trabalhadores do Comércio do século XXI. Muita gente que não conheça o projecto pode sentir-se baralhada. Afinal, qual dos dois CD’s é o “best of”?
Banco de ensaio nº 27 transmitido no programa Atlântico da Antena Miróbriga em 26/05/2007Site:
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